A senzala exalava o calor de um local superlotado, o suor de mais um dia brutal de trabalho, e o medo de novas ordens ou atitudes desmedidas.
O breu já se formava lá fora em noite sem lua, que prometia chuva. Nenhuma luz entrava pelas frestas da taipa desgastada pelo tempo e não se viam os animais que penetravam, insetos noturnos. Havia sempre o risco de uma cobra por baixo do tapete improvisado que protegia do chão áspero, feito de folhas de bananeira e palha de folha de cana. Por isso, sempre havia aqueles encarregados de bater todo o espaço com varas de bambu, para espantá-las. Um ou outro pequeno candeeiro, pois sinhozinho não gostava de gastar óleo de baleia com negros.
A senzala quadrangular era dividida em quatro setores: os homens de um lado, mulheres de outro, as mulheres com filhos recém-nascidos num terceiro canto, filhos estes de pele mais clara, e alguns até de olhos verdes. Os pretos e as pretas não podiam coabitar nem ter filhos, exceto se o “procriador” se destacasse muito pela força e inteligência. Não havia querer, não havia gostar.
No quarto último canto, os velhos, escravos e escravas juntos, já que não se reproduziam mais, haviam conseguido sobreviver à lida, aos maus tratos e à tristeza de ver seu povo sofrendo tanto.Traziam ainda a mente lúcida, sabiam receitas para curar todo o tipo de moléstias, sabiam rezar contra os males do corpo, e aguardavam a madrugada para entoarem seus cantigos nostálgicos, espantarem o banzo, e ensinarem aos outros suas lendas, suas origens e tradições. Alguns incorporavam velhos espíritos das florestas, dos cursos d’água, do fundo da terra, e rendiam seu culto de Fé a Olorum, Orixalá, Oxumaré, Obaluaiê, Iroko, Nanã Buruku e a Abikú, este último, pelo grande número de crianças que morriam. Colocavam em um pequeno pote de barro, o que tinham conseguido trazer escondido do parco almoço, um pouco de fubá, inhame, umas favas de feijão e enfeitavam com flores, completando com Amor e Devoção a singela entrega.
Também rendiam respeito ao Exu Kimbandeiro, pois na senzala só haviam negros bantos. Os caçadores de escravos haviam se espalhado de tal maneira que depois deles não houve mais os Tatás africanos, destruindo na África toda uma cultura milenar. Ou quem sabe era mesmo o momento dela migrar através do oceano para este Brasil que ainda não percebia o tamanho do horror que abrigava em seu generoso chão.
Havia ali naquele pobre albergue desguarnecido, uma velha escrava pequena, de passos miúdos, mãos mágicas que consertavam ossos quebrados, feridas abertas, corações partidos… Não tinha tido tempo de completar sua iniciação de Sacerdotisa em sua Terra, o Congo, quando foi aprisionada e separada dos seus. A solidão, a tristeza, a saudade, a perda das esperanças de ver suas matas novamente, não lhe haviam dobrado a cerviz. Do mesmo modo que era meiga, era firme, e se dedicava ao mundo espiritual incansavelmente, de alguma maneira conseguindo amenizar um pouco o sofrimento daqueles que estavam ali.
Ensinava que seu Povo era de caçadores, mas também guerreiros, e que mesmo desarmados e vencidos, cada negro ali tinha de manter a cabeça em pé, o pensamento focado na superação das provas físicas e a necessidade da solidariedade para obterem um pouco de Paz no seu dia a dia.
Ela já não tinha força para trabalhar no plantio da cana ou na colheita do milho, mas Sinhazinha mais de uma vez havia lhe chamado para curar seus filhos. Assim, ela passava seus dias curando, cantando, sorrindo com seus olhos enevoados pela idade, enquanto tratava das feridas dos que eram castigados.
Mas naquela noite sem Lua, com a chuva já encharcando o chão, deixando o sono de todos ainda mais desconfortável, subitamente o capataz da fazenda invade o local, destrancando e abrindo a porta com violência gritanto: “Um negro desgraçado fugiu, Uma fuga, uma vida.”! E agarrou o adolescente Jerônimo, que embora jovem era muito alto e forte, além de mostrar grande personalidade. Jerônimo iria pagar pela fuga. Com força descomunal para seu tamanho, na hora do derradeiro golpe do facão, Maria Quimbandeira desviou a arma certeira, salvando o menino, mas ela própria caiu, transpassada pela lâmina, e em pouco tempo sucumbiu, sem um gemido.
Acordou junto a sua floresta africana, em meio a uma linda dança de encantados. O grande Babá-Egun a ela se dirigiu lhe dando o comando de duzentos guerreiros e disse:
“ Babá Maria, sua missão na Terra findou, mas se inicia aqui uma muito maior, junto aos homens, embora nenhum deles poderá vê-la. Irás ainda por muito tempo vagar o Planeta, com a finalidade de proteger os homens do mal, e junto com outros milhares que estão fazendo o mesmo trabalho, até o dia em que poderás sentar à beira deste riacho e descansar. Agora não, que é tempo de muitas modificações e auxílio aos homens encarnados. Eis que sai de cena a velha Maria e surge a Vovó Maria da Pemba, sempre protegendo, amparando, fortalecendo e abençoando seus protegidos”.
Eis mais uma linda e comovente história de ascensão de uma alma, que se dedica até hoje, no silencio de outros planos a semear o Bem, amar incondicionalmente, a velar por aqueles que lhes afinizam, desmanchando demandas quebrantos e mazelas.
Salve Vovó Maria da Pemba! Salve a Sua Luz e a Sua Coroa! Adorei a Almas! Salve a África! Salve a Bahia! Salve o nosso Brasil!
Por Alex de Oxóssi – Rio Bonito/RJ